FIGURAS DO MEU TEMPO por Ruy Monte | Os hotéis de há 60 anos
«De 1908 a 1912 – com a ditadura de João Franco, proclamação da República e invasão do Couceiro – duas pensões se criaram, em Fafe, na categoria de bons hotéis citadinos.
No largo, foi o Hotel da Felismina, onde essa extraordinária cozinheira, com a fama dos feijões com tripas, óptimo pão de ló, assados e saboroso verdasco de três estalinhos de boca, enchia a sala e a loja de fregueses.
Era o hotel dos republicanos..
Nas tardes de domingos e quartas-feiras, não faltavam dezenas de fregueses a fazer o quilo da feijoada, da carne assada e do vinho de Basto, com vivas ao Afonso Costa e ao Alferes do Ribeiro.
Eram muito boa gente os donos do hotel!
Mas cuidado com o marido da dona do hotel!
Forte, sério e facilmente colérico, com a maior das facilidades borrifava com vinho os queixos dos fregueses que lhe fizessem qualquer observação sobre o serviço.
Entre muitos casos destes, certo lavrador de Seidões, que já tinha o bucho atestado para as três léguas do caminho, permitiu-se dizer-lhe que a caneca mal cheia tinha um galão de major.
Resposta imediata do dono: - Ai, sim? Ai, sim? Deixa cá, deixa cá ver a caneca!, põe-na debaixo da torneira e deixa cair o vinho até deitar por fora e espalhar, no chão, obra de dois ou três litros.
- Está bem, assim. Está bem? Porto, Braga, Porto, Braga! Está bem assim?
E, novamente, rápido, como um tiro, atira-lhe à cara com vinho e com a caneca, deixando-o a sangrar e quase curado da perna.
E, como se nada fosse, correu a atender outros fregueses, com uma casquinada de riso que era sempre de mau agouro.
Naquele dia, não houve mais reclamações.
Ao cimo da vila, ao lado do Jardim do Calvário, fundou-se outro belo hotel: o Fafense.
Também ficaram célebres a sua vitela assada, o seu delicioso pão de ló e o óptimo tinto de Basto de se lhe tirar o chapéu.
Era o hotel dos monárquicos e dos abades.
Cascava-se-lhe forte e bem na vitela assada, no pão de ló e na tinta, sem olhar a despesas.
Na intimidade da sua loja interior protegida pelas estantes da mercearia, encostado às pipas, havia sempre um auditório de lágrima fácil, arrastado pela eloquência dos padres, orando pela boa sorte do senhor D. Manuel II.
Singular família a do dono da casa.
O pai, pelo exercício da arte, tornara-se desempenado e robusto atleta.
O filho mais velho, sacerdote culto e fisicamente um belo homem, impressionava pela diplomacia e pelo talento.
O do meio, um autêntico toma-lobos de força e constituição hercúlea, metia respeito, embora fosse muito correcto e respeitador.
O mais novo era o menino-bonito da família, verdadeiro fidalguinho na figura e no trato.
O pai e o Ezequielzinho, (o sufixo inho não é diminutivo) de racha na mão, faziam uma parelha de caceteiros, como ainda não vi, até hoje.
Como quer que fosse constou, numa noitada de S. Torquato de Guimarães, que alguém tinha rachado a cachola de um fafense.
- Oh! Pai da vida, que tal fizestes!
Sem mesmo o conhecerem, correr ao campo circunvizinho do mosteiro e armar-se dos cacetes que lá tinham escondido, por causa das coisas, foi obra dum momento.
O seu aparecimento, de varapaus no ar, provocou o alarido geral.
- Aí vêm os Ensambladores! Aí vêm os Ensambladores! (O povo pronunciava Xambladores).
E aquilo foi simples, como uma igualdade matemática: cada par de cacetadas = cada par de adversários estendidos.
Varreram metade da romaria, em meia hora!
À hora de se deitar o último fogo, já com o sol nascido, como era naquele tempo, ainda se contentava a refrega.
- Sim, senhor, aquilo é que foi bater!
E todos carregavam no verdasco das duzentas pipas do arraial, até não poderem fazer o quatro da ordem, com as duas pernas.
Mas que vitela, meu Deus, a gente comia nos dois hotéis!
Que vitela!
Que pão de ló!
Que verdasco!
- E por que preço!»
RUY MONTE
In jornal Justiça de Fafe, nº144, 20 de Dezembro de 1979